segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Conversa Fiada

“Que a vida é mesmo coisa muito frágil”

Meu avô nunca foi de muitas palavras. Até mesmo quando lhe pedia bênção ele era econômico. Diferente da minha avó, que, com muito orgulho, enche a boca para falar “Deus te abençoe, minha filha”, ele apenas abria a boca e balbuciava “...çoe...”. As vezes em que mais o vi falando foram as reuniões de natal e dia dos pais ou as vezes em que se irritava por algum motivo: por terem “descacetado” o aparelho da Sky, ou o aparelho de som mega-moderno – o qual, eu acho, ele nunca aprendeu a manusear direito –, ou quando eu e meus irmãos brigávamos ou brincávamos alguns decibéis acima da normalidade. No mais, se o deixássemos quieto, não seria ele a quebrar espontaneamente a paz e o silêncio pelos quais tanto prezava.
Foi desenhista de uma companhia de telefone; projetava as instalações telefônicas e a colocação de cabos em alguns lugares da cidade. Mas tenho para mim que, se pudesse ter sido pintor profissionalmente e ter passado mais tempo em casa com as filhas, seria plenamente satisfeito. Pintar sempre foi sua paixão. As paredes da casa de meus avós são um verdadeiro relicário de sua obra – belíssima, diga-se de passagem.
Acho que ele queria que um de seus netos enveredasse pelo caminho da arte também e eu até que tentei algumas vezes, sem sucesso. Uma coisa que tenho certeza é que ele queria ter um neto violinista e muitas vezes essa ideia me passou pela cabeça, mas, durante a juventude, a sensação que se tem de eternidade, assim como nos impele, nos impede de fazer inúmeras coisas. Essa foi uma delas.
Sempre tive um relacionamento muito próximo com meus avós. Quando me via à toa em casa – e isso acontecia com uma frequência espantosa durante minha adolescência – ia logo para a deles. Fazer o quê? Bater um papo com minha avó, jogar umas partidinhas de buraco, fazer palavras cruzadas – que, além dos doces, nunca faltaram – ou apenas sentar-me ao lado do meu avô para assistir, muda, à televisão.
Quando era pequena, adorava jogar bola com ele no quintal e acho que ele também curtia passar esse tempo comigo – crianças são um mundo à parte; fascinantes. Vira e mexe arriscávamos alguns chutes e depois íamos até a banca de jornal na esquina para comprar revistinhas da turma da Mônica. Na volta, parávamos na padaria do Virgílio para comprar picolés.
Lembro-me de um natal em que ele bebeu um pouco além do que deveria e ficou rindo à toa. Eu e minha prima nos divertimos vendo toda aquela felicidade de graça. Ele tinha um jeito muito peculiar de ser, mas mesmo assim sempre foi muito querido por todos, principalmente as amigas da minha avó, que não lhe poupavam elogios. “Seu Zé é um bonitão.”
Ele chamava meus irmãos de bacurau e a mim, de bacurinha. Até hoje não sei o que isso quer dizer. Sei que existe uma ave com esse nome que grita como uma mulher em perigo – é deveras assustador –, mas acho que não é esse o motivo do apelido carinhoso.
Infelizmente, com o passar do tempo, o corpo começa a mostrar toda sua fragilidade e a gente percebe, muito a contragosto, que a morte é realmente inevitável para todos. Pois se nem as estrelas são eternas, que dirá de nós.
Agora, o mesmo Zé bonitão que há pouco mais de dois meses atrás estava em cima de uma escada, com um pedaço de bambu na mão à procura de cocos maduros está em uma cama de hospital esperando, creio eu, o momento certo de partir sem causar muita dor. Impossível.
Vê-lo amarrado à cama, ou tentando – em vão – usar agora todas as palavras que economizou esses anos todos é mais doloroso do que qualquer perda. Meu coração está em pedaços; meus olhos, inchados. Minha cabeça dói e, por mais que eu tente tirá-la daquela UTI, ela insiste em voltar e lá permanecer.
Uma enorme sensação de impotência toma conta de mim e não sei se conseguirei ser forte para ajudar minha avó, minha mãe e minhas tias a passarem por essa fase. No momento, a única coisa na qual consigo pensar são os muitos “eu te amo” que deixei de falar por vergonha. Ou o último “feliz dia dos pais” que deixei de falar por fraqueza.


P.S.: No final das contas, ele conseguiu o que queria. Morreu em um momento em que estávamos todos distraídos ou dormindo. Um breve momento de descanso e distração em dois meses preocupantes e cansativos para todos. Principalmente para ele.


--> Feliz dia dos pais - atrasado - para todos os pais e avôs

--> Música da semana: Por onde andei - Nando Reis

4 comentários:

Giulia Gomes disse...

to arrepiada...

certamente é um sentimento que a maioria das pessoas já teve...
infelizmente, os momentos vão acontecendo e quando a gente percebe, aquilo que parecia ter acontecido ontem já está fazendo aniversário.
A gnt vai empurrando com a barriga nossas expectativas, nossos planos de mudança...
O seu texto foi uma lição! "Nunca permita que a frase "é tarde demais" faça sentido na sua vida..."

George Luis disse...

Pura verdade. E como a verdade dói, não!?

Concordo com a Giulia aqui de cima. Não devemos permitir que a frase "é tarde demais" faça sentido em nossas vidas.

Mas, é sempre difícil botar em prática ...

BLOG sobre blogs disse...

Todo pai, filho, neto avô deveriam ler esse texto.
Talvez não deixassem tantas coisas nas entrelinhas...

Unknown disse...

Lindo texto! Fiquei emocionada com sua sensibilidade, ainda mais agora que deparo com a fragilidade dos meus pais.