terça-feira, 29 de setembro de 2009

Arteculando

(Continuação do texto da semana passada)

Hora do recreio, de Lílian Fontes (parte 2/2)

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É, a gente comprou essa casa. Eu nunca tinha morado em casa antes. Desde que nasci, morei em apartamento. Não, eu não fui morar na casa do recreio logo que casei. Não foi assim não. Olha, primeiro eu morei num outro apartamento de dois quartos. Lembro-me agora, o meu menino mais velho nasceu nesse apartamento, os outros não, nascera, em outro. Foi, eu morei num outro apartamento antes de ir pra casa do Recreio. Eu sempre quis morar em casa, mas agora não quero mais. Minha mãe dizia que lá ia ser difícil arrumar empregada, que o lugar era muito isolado. Mas eu queria morar numa casa. Era uma casa muito bonita, só que agora eu não quero voltar lá.

Como é a casa? O portão? Tinha um portão de madeira pintado em azul colonial. As janelas e as portas também eram todas dessa cor. Eu gosto muito de azul, sempre senti paz no azul, por isso eu quis tanto o azul nas portas e nas janelas da minha casa. Mesmo sendo tudo azul, eu não quero mais voltar lá. Ainda bem que aqui as janelas e as portas não são azuis. O branco também me dá paz. Eu acho que estou preferindo o branco, preferindo ficar aqui nessa casa. Aqui ele não vem. Eu sei que ele não vem. Quem? Aquele homem que esteve na minha casa. Não, eu não me lembro da cara dele. Eu nunca tinha visto aquele homem antes. Não consigo me lembrar. Meu marido já me disse. Todo dia meu marido vem aqui e diz que eu nunca mais vou ver aquele homem. Mas eu tenho medo. Medo de chegar naquela janela e ele estar encostado num poste me olhando. Tem um poste em frente a casa não tem? Sempre tem um poste. A rua está cheia de postes, a rua está cheia de homens encostados em postes. Na frente da minha casa tem um poste. Do outro lado da rua tem um poste. Acho que ele ficava lá, olhando para minha casa. Eu nunca tinha visto aquele homem, mas deve ser de lá que ele via tudo. Via a hora de eu dar um beijo no meu marido e ele sair, ele e meu menino mais velho. É, o meu menino mais velho, esse que não tem vindo aqui, todo dia saia de manhã com o pai. Os outros não, os outros estudam à tarde. Toda tarde era eu e meu menino mais velho, ele almoçava comigo e ficava. Ficava ouvindo música a tarde inteira, eu ficava em casa com esse menino ouvindo música. Não agüentava, falava para ele ir estudar, mas ele não ia. Não sei se lá daquele poste dava para ouvir as vezes que eu berrava com o menino para ele ir estudar. Daquele poste ele devia ouvir tudo. Eu não quero mais saber de poste, de rua nem de nada. Não quero mais saber de nada. Quero ficar aqui neste quarto, só vendo meu marido, os meus filhos e vocês dessa casa que cuidam de mim. Eu preciso mesmo que cuidem de mim porque eu não consigo mais sair na rua. Era eu quem ia a rua comprar a comida para minha casa. Já disse ao meu marido para ele também sair de lá. Mas ele é homem, homem é muito corajoso. E ele acha que pode ficar lá com o meu menino e a minha menina e o meu menino mais velho. Ele disse que aquele homem nunca mais vai voltar lá. Eu acho que ele pode voltar sim, entrar na minha sala, como naquele dia. Aquele homem com uma arma na mão. Ele tinha uma arma... Só estávamos eu e o meu menino mais velho. Esse que não tem vindo aqui. O meu filho ouvia som com o headfone no ouvido, não escutou quando o homem pediu para eu mostrar onde era o meu quarto. “Tira logo a roupa”, ele disse. Eu disse que não tirava. E ele disse que não estava brincando. “Se você berrar eu te mato”. Me lembro bem disso que ele disse. Ele me deu uma mordida bem aqui no peito, doeu. Mas se eu gritasse ele me matava. Tirou as calças, deu uma cusparada, eu tremia, tremia muito. De repente, ouvi a voz do meu menino mais velho. Ouvi o homem dizer a ele: “Se você berrar eu te mato”. Eu me levantei... É, foi assim. Me levantei e fui até a gaveta da cômoda. Me lembrei que ali eu tinha uma tesoura. Eu quase não uso essa tesoura, mas eu me lembrei dela. Segurei nela com muita força, me lembro disso. Eu não podia fazer barulho. E eles estavam naquele canto da sala. O homem de quatro no chão em cima do meu filho. Acho que foi num pulo. Foi sim, foi num pulo que eu enfiei as duas lâminas da tesoura nas costas dele. Foi. Foi num pulo, agora eu me lembro.


Espero que tenham gostado, bjs e téterça.

Um comentário:

Giulia Gomes disse...

Caramba Rafa!!!
fiquei toda arrepiada no final!!
mto bom!!!
mto bom mesmo!!
adorei de verdade!!