segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Conversa Fiada

“Palavras apenas, palavras pequenas, palavras”


Hoje é domingo. São dez e vinte e cinco e eu estou tentando encontrar algo sobre o que falar. Estou ouvindo a Ave Maria, composição de Bach. Hoje o meu pai baixou várias músicas clássicas no meu computador e eu estou adorando conhecê-las aos pouquinhos. Uma pena que não tenham letra, senão, provavelmente usaria uma delas para intitular o post dessa semana.
Ontem fui à bienal do livro. Na sexta também. Queria ter ido mais dias, mas coisas aconteceram e meus planos acabaram indo por água abaixo. Mas algumas coisas que aconteceram até que valeram a pena. Do contrário, eu não teria tido a oportunidade de assistir, no sábado passado, a um maravilhoso pôr-do-sol, com a vista abençoada do parque da cidade.
Pensando nessa minha falta de idéias, lembro-me do debate que assisti na bienal, na sexta-feira. As convidadas foram, nada mais, nada menos do que Martha Medeiros – cronista do jornal O Globo e, na minha opinião, uma das melhores que temos hoje em dia – e Letícia Wierzchowski – autora de, entre outros, do livro “A casa das sete mulheres”, adaptado para a TV pela rede Globo. No debate foi falado sobre as diferenças entre a criação de personagens no conto e o autor como personagem na crônica.
Eu sempre me identifiquei mais com esta última. Não consigo escrever contos. Talvez não tenha tanta imaginação, talvez precise ler mais ou, talvez, simplesmente não tenha capacidade.
Mas agora, e esse é o motivo pelo qual me lembrei do debate, eu estou me sentindo incapaz de escrever até em primeira pessoa, ou como narradora. Não consigo encontrar sobre o que falar.

Vou postar um texto da Adriana Falcão. Para quem não conhece, ela é roteirista e escritora, tem vários livros publicados e escreve crônicas para O Estado de São Paulo. Eu adoro esse texto! Queria ter tido a capacidade de escrevê-lo.


Palavras
(Adriana Falcão)

As gramáticas classificam as palavras em substantivo, adjetivo, verbo, advérbio, conjunção, pronome, numeral, artigo e preposição. Os poetas classificam as palavras pela alma, porque gostam de brincar com elas, e para brincar com elas é preciso ter intimidade primeiro. É a alma da palavra que define, explica, ofende ou elogia, que se coloca entre o significante e o significado pra dizer o que quer, pra dar sentimento às coisas, pra fazer sentido. Nada é mais fúnebre do que a palavra fúnebre. Nada é mais amarelo do que o amarelo-palavra. Nada é mais concreto do que as letras c, o, n, c, r, e, t, o, dispostas nessa ordem e ditas dessa forma, assim, concreto, e já se disse tudo, pois as palavras agem, sentem e falam por elas próprias. A palavra nuvem chove. A palavra triste chora. A palavra sono dorme. A palavra tempo passa. A palavra fogo queima. A palavra faca corta. A palavra carro corre. A palavra palavra diz. O que quer. E nunca desdiz depois.
As palavras têm corpo e alma mas são diferentes das pessoas em vários pontos. As palavras dizem o que querem, está dito, e pronto. As palavras são sinceras, as segundas intenções são sempre das pessoas. A palavra juro não mente. A palavra mando não rouba. A palavra cor não destoa. A palavra sou não vira casaca. A palavra liberdade não se prende. A palavra amor não se acaba. A palavra idéia não muda. Palavras nunca mudam de idéia.
Palavras sempre sabem o que querem. Quero não será desisto. Sim nunca jamais será não. Árvore não será madeira. Lagarta não será borboleta. Felicidade não será traição. Tesão nunca será amizade. Sexta-feira não vira sábado nem depois da meia-noite. Noite nunca vai ser manhã. Um não será dois em tempo algum. Dois não será solidão. Dor não será constantemente. Semente nunca será flor. As palavras também têm raízes, mas não se parecem com plantas, a não ser algumas delas, verde, caule, folha, gota.
As células das palavras são as letras. Algumas são mais importantes do que as outras. As consoantes são um tanto insolentes. Roubam as vogais para construírem sílabas e obrigam a língua a dançar dentro da boca. A boca abre ou fecha quando a vogal manda. As palavras fechadas nem sempre são mais tímidas. A palavra sem-vergonha está aí de prova. Prova é uma palavra difícil. Porta é uma palavra que fecha. Janela é uma palavra que abre. Entreaberto é uma palavra que vaza. Vigésimo é uma palavra bem alta. Carinho é uma palavra que falta. Miséria é uma palavra que sobra. A palavra óculos é séria. Cambalhota é uma palavra engraçada. A palavra lágrima é triste. A palavra catástrofe é trágica. A palavra súbito é rápida. Demoradamente é uma palavra lenta. Espelho é uma palavra prata. Ótimo é uma palavra ótima. Queijo é uma palavra rato. Rato é uma palavra rua.
Existem palavras frias como mármore. Existem palavras quentes como sangue. Existem palavras mangue, caranguejo. Existem palavras lusas, Alentejo. Existem palavras itálicas, ciao. Existem palavras grandes, anticonstitucional. Existem palavras pequenas, microscópico, minúsculo, molécula, partícula, quinhão, grão, covardia. Existem palavras dia, feijoada, praia, boné, guarda-sol. Existem palavras bonitas, madrugada. Existem palavras complicadas, enigma, trigonometria, adolescente, casal. Existem palavras plurais, mais, muito, coletivo, milhão. Existem palavras que são palavrão. Existem palavras pesadas, chumbo, elefante, tonelada. Existem palavras doces, goiabada, marshmallow, quindim, bombom. Existem palavras que andam, automóvel. Existem palavras imóveis, montanha. Existem palavras cariocas, Corcovado. Existem palavras completas, elas todas.
Toda palavra tem a cara do seu significado. A palavra pela palavra tirando o seu significado fica estranha. Palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra, palavra não diz nada, é só letra e som.

In: O doido da garrafa. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2003, p. 97-99.


O post ficou enorme e eu sei que isso não é legal. Mas se você chegou até aqui, tenho certeza de que não se arrepende.



Música da semana --> Palavras ao vento – Cássia Eller

3 comentários:

Matheus disse...

Adorei o post!!!!!!!
Lindo o texto da falcão!!!!!!!!!
Faltou falar da palestra do DaMatta!

May Guimarães disse...

"RASÖ" Já havia lido outras coisas da Falcão mas esse texto não conhecia...e é lindo...

Giulia Gomes disse...

Amei!!!
mto!!!
principalmente o por do sol!
uhauahauhua